segunda-feira, 8 de setembro de 2025

A Inviabilidade Jurídica e Ética da "Desapatriação" – Uma Análise Crítica


 A Inviabilidade Jurídica e Ética da "Desapatriação" – Uma Análise Crítica


Por Urias Rocha Br – Jornalista independente e membro da ADESG

Urias Rocha - Jornalista Independente


A proposta de criar leis para "desapatriar" ou desnacionalizar cidadãos como pena por certos crimes, notadamente a traição, é um tema que, à primeira vista, pode soar como uma medida de rigorosa defesa nacional. No entanto, ao ser submetida ao crivo do Direito Internacional, dos princípios dos Direitos Humanos e da própria razão de Estado, revela-se um profundo absurdo jurídico e um perigoso anacronismo. Este estudo defende que a pátria é um vínculo inalienável e que crimes, inclusive de traição, devem ser julgados e punidos dentro do próprio território nacional, jamais pela destituição da nacionalidade.


1. O Direito à Nacionalidade como Direito Humano Fundamental**


A nacionalidade é muito mais do que um documento; é um atributo fundamental da personalidade humana, um direito pré-político que confere identidade, pertencimento e acesso a uma série de outros direitos.


*  Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH - 1948):** O Artigo 15 é claro e direto:

    1. Todo homem tem direito a uma nacionalidade."*

    2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade."*

    Este artigo foi uma resposta direta aos horrores da Segunda Guerra Mundial, onde regimes totalitários utilizaram a privação de nacionalidade como ferramenta de perseguição política e étnica, criando milhões de apátridas vulneráveis.


Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (1954) e Convenção para Reduzir os Casos de Apatridia (1961):** Estes tratados, dos quais o Brasil é signatário, consolidam o compromisso da comunidade internacional em erradicar a apatridia. Eles estabelecem que a perda de nacionalidade só pode ocorrer em casos muito específicos e **desde que não resulte em apatridia**. A "desapatriação" como pena criaria, por definição, um apátrida, violando frontalmente estes princípios.


2. O Problema da Apatridia: Criando um "Fantasma Jurídico"


Um indivíduo desapátrida torna-se um "fantasma jurídico". Sem nacionalidade, ele perde a proteção de qualquer Estado, tornando-se extremamente vulnerável.


*Direitos Negados:* Um apátrida não tem direito a passaporte, não pode votar, trabalhar legalmente, acessar sistemas públicos de saúde e educação, possuir propriedades ou recorrer à proteção diplomática de qualquer país.

*   Crise Humanitária: A criação deliberada de apátridas gera uma crise humanitária, deslocando pessoas para um limbo legal do qual é quase impossível escapar. Isso sobrecarrega organismos internacionais e agrava problemas de imigração ilegal e tráfico de pessoas.

* Falta de Reciprocidade:** Nenhuma nação civilizada aceitaria receber um indivíduo que outro país declarou indesejável e expulsou, especialmente sem nacionalidade. A medida, portanto, é praticamente inaplicável e levaria a um impasse logístico e diplomático.


3. A Soberania Nacional e a Jurisdição Penal


O argumento central de que **"todo cidadão deve ter sua pátria e em caso de traição deve ser condenado a pena adequada dentro da própria pátria"** é o mais sólido e alinhado com o Estado Democrático de Direito.


*   **Exercício da Soberania:** Um Estado soberano é plenamente capaz de investigar, processar e punir crimes cometidos contra a sua segurança e integridade. Códigos Penais e leis de segurança nacional existem precisamente para isso. Prisão, pena restritiva de direitos e, em sistemas onde ainda vigora, a pena capital (em alguns países) são as respostas previstas para o crime de traição.

*   **Evasão de Responsabilidade:** "Desapatriar" um cidadão traidor é, na verdade, um ato de renúncia à soberania. É como se o Estado dissesse: *"Não sabemos o que fazer com este problema, então vamos expulsá-lo para que seja um problema de outro lugar (ou de lugar nenhum)."* É a antítese da autoridade estatal.

*Precedente Perigoso:* Se um Estado pode retirar a nacionalidade por traição, o que impede que no futuro ele a retire por opinião política, orientação religiosa, origem étnica ou oposição ao governo? A medida abre um precedente extremamente perigoso para a perseguição de minorias e dissidentes.


4. A Posição do Brasil e a Constituição Cidadã.


A legislação brasileira é um exemplo claro de como uma nação soberana trata a questão.


*   Constituição Federal de 1988 (Art. 12, § 4º):** A lei brasileira prevê a possibilidade de **perda** da nacionalidade, mas em duas hipóteses extremamente específicas e que não configuram "desapatriação" como pena:

    1.  Cancelamento da naturalização, por decisão judicial transitada em julgado, por prática de atividade nociva ao interesse nacional.

    2.  Aquisição de outra nacionalidade, salvo nos casos de reconhecimento de nacionalidade originária pela lei estrangeira ou de imposição de naturalização pela norma estrangeira como condição para permanência no território estrangeiro ou para o exercício de direitos civis.


Note-se que a primeira hipótese aplica-se apenas a **naturalizados** (nunca a brasileiros natos) e mesmo assim, o processo é judicial e garante amplo direito de defesa. Um brasileiro nato **não pode** ter sua nacionalidade cassada. Isso protege o cidadão de arbitrariedades do Estado e garante que ele sempre responderá por seus crimes perante a justiça brasileira.


Conclusão


A ideia de "desapatriar" cidadãos é, de fato, um absurdo jurídico e humanitário. Ela:


1.  Viola tratados internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil e a maioria das nações civilizadas são signatários.

2.  Cria o status insustentável e perigoso da apatridia, condenando um indivíduo a uma vida sem direitos ou proteção.

3.  Representa uma falência da soberania estatal, que abdica de seu dever de julgar e punir crimes cometidos em seu território.

4.  Abre um precedente perigoso para a perseguição política e o autoritarismo.


A afirmação final do tema é a correta e deve ser defendida: **Todo cidadão, mesmo aquele que comete o crime mais grave contra a nação, como a traição, deve ser julgado e cumprir sua pena dentro do seu próprio país, sob as leis que jurou defender ou sob as quais nasceu.** Esta é a marca de um Estado forte, soberano e verdadeiramente comprometido com a Justiça e os Direitos Humanos.


Urias Rocha - Jornalista BR

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