Em 1972, um homem comum — sem armas, sem explosivos — escalou o altar da Basílica de São Pedro, em Roma, e desferiu quinze marteladas na escultura Pietà, de Michelangelo. Laszlo Toth gritou: "Eu sou Jesus Cristo!", enquanto destruía parte do rosto e do braço da Virgem Maria.
O martelo era pequeno, mas o estrago não se media em centímetros de mármore: era simbólico, espiritual, civilizacional. Não importava que a escultura fosse restaurável. Importava o que ela representava. Era o sagrado profanado — e, com ele, toda uma ideia de ordem, beleza e transcendência.
Mais de cinquenta anos depois, em outro continente, uma mulher se aproximou de outra estátua e, com batom vermelho, escreveu a frase "Perdeu, mané" em "A Justiça", de Alfredo Ceschiatti, que está na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Desde que o voto do relator foi divulgado, surgiram comentários nas redes sociais questionando: "Tudo isso por pichar uma estátua?".
Porém, é preciso lembrar que o objeto danificado é apenas um detalhe diante do envolvimento amplo da mulher com o pacto pelo desmonte do Estado Democrático de Direito. O verdadeiro desvario dos que estiveram no "dia da infâmia" foi acreditar que estariam acobertados pelo manto da verdade.
Iter criminis
Na linguagem do Direito Penal, existe um conceito-chave: iter criminis — o "caminho do crime". Ele descreve a progressão entre a ideia criminosa e sua concretização, passando por etapas como cogitação, preparação, execução e, se consumado, o resultado final.
No caso de Débora, o gesto com o batom foi apenas o último passo de um trajeto longo, consciente e articulado, como detalhado no voto do ministro Alexandre de Moraes.
Segundo o relator, desde o fim das eleições de 2022, Débora aderiu a movimentos que negavam a legitimidade do processo eleitoral. Participou de acampamentos diante de quartéis, onde se pregava insistentemente uma intervenção militar, apoiou publicamente a ruptura da ordem constitucional e, no dia 8 de janeiro de 2023, integrou o grupo que invadiu e depredou as sedes dos Três Poderes, em Brasília.
A frase na estátua foi a assinatura final de uma narrativa golpista escrita ao longo de meses.
"A denunciada [...] concorreu para a prática dos crimes, somando sua conduta, em comunhão de esforços com os demais autores, objetivando a prática das figuras típicas imputadas", escreveu Moraes.
Não foi só pela estátua — e nem poderia ser
Um dos equívocos mais comuns nas críticas ao julgamento é ignorar o conjunto de crimes imputados à ré.
Débora não está sendo processada "por pichar uma estátua". Se fosse apenas por isso, a pena seria simbólica: o crime de deterioração de patrimônio tombado tem pena máxima de três anos, permitindo até mesmo uma sanção alternativa à prisão.
Na realidade, ela responde por cinco crimes:
Abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do CP);
Tentativa de golpe de Estado (art. 359-M);
Dano qualificado com violência (art. 163, parágrafo único, I, III e IV);
Associação criminosa armada (art. 288, parágrafo único);
Deterioração de patrimônio tombado (art. 62, I da Lei 9.605/98).
A pena sugerida — 14 anos de prisão — decorre do concurso material entre esses delitos, todos descritos como resultantes de uma "obra comum".
Segundo Moraes, "o desencadeamento violento da empreitada criminosa afasta a possibilidade de que a denunciada tenha ingressado na Praça dos Três Poderes de maneira incauta".
A conclusão não se baseia apenas no gesto com o batom, mas em laudos, imagens, mensagens apagadas e no depoimento da própria ré, que admitiu o vandalismo.
Processo: AP 2.508
A força do símbolo e a denúncia contra o arbítrio
O episódio também remete, em outro contexto histórico, ao ambiente de paranoia e distorção que marcou o Caso Dreyfus, no final do século XIX, na França.
Na época, o capitão Alfred Dreyfus foi falsamente acusado de traição, em um processo conduzido sob pressão de setores do Exército e da opinião pública, alimentados por preconceitos e teorias conspiratórias.
Contra as evidências e contra a razão, formou-se uma crença coletiva de que Dreyfus era culpado — porque assim servia melhor a determinados interesses políticos e ideológicos.
O escritor Émile Zola, ao publicar o célebre artigo "J'accuse..!", desafiou esse pacto de ilusão com uma denúncia frontal: o Estado estava disposto a sacrificar a verdade para manter intacta uma versão conveniente da realidade.
Esse mesmo tipo de delírio ressurge nos discursos que tentam justificar os atos do 8 de janeiro. Na tentativa de reescrever os fatos, multiplicam-se versões alternativas — ora negando o vandalismo, ora alegando que tudo foi uma encenação, ora tratando os réus como vítimas de perseguição.
A democracia, como a escultura de Michelangelo, também pode ser restaurada. Mas isso não significa que se deva tratar com leveza aqueles que tentaram destruí-la.
Urias Rocha BR - Jornalista Independente - Membro da ADESG
Mato Grosso do Sul
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