JOSÉ
ANTÔNIO PEREIRA
Óleo s/ tela de Fausto Furlan |
Por Urias Fonseca Rocha
Jornalista hexa neto do fundador
de Campo Grande -MS
Para se traçar o perfil de José
Antônio Pereira basta seguir a sabedoria milenar e procurar conhecê-lo através
de suas obras. Todo artífice deixa sua marca na obra que realiza. Podemos assim
identificá-lo nos diversos aspectos do trajeto de sua vida, desde Barbacena,
passando por São João Del-Rei e Monte Alegre, nas Minas Gerais, até chegar ao
centro da região sul da antiga Província de Mato Grosso. A história de sua vida
se confunde, portanto, com a da fundação do Arraial de Santo Antônio do Campo
Grande.
O filho de Manoel Antônio
Pereira e Francisca de Jesus Pereira, nascido na cidade de Barbacena (antigo
Arraial de Nossa Senhora da Piedade da Borda do Campo) em 19 de março de 1825,
descende dos Pereira, portugueses que se transferiram para o Brasil, cujas
histórias se perderam nos séculos que se seguiram ao descobrimento de nossa
Pátria. Já moço, muda-se para São João Del-Rei (originado do Arraial Novo de
Nossa Senhora do Pilar), e se casa com a jovem Maria Carolina de Oliveira.
Desejando estabelecer-se definitivamente
em lugar onde pudesse desenvolver suas atividades de pequeno agricultor e
pecuarista com sua família nascente, transfere-se em meados do século dezenove
para o povoado de São Francisco das Chagas do Monte Alegre, pertencente ao
então denominado Distrito da Farinha Podre.
Fundada no início dos anos 1800
por uma numerosa família mineira que, na tentativa de apossar-se de terras
devolutas no sertão de Goiás, acabou fixando-se naquela região do Triângulo
Mineiro, Monte Alegre se situa no caminho que ligava a Capitania das Minas
Gerais às terras goianas. Terminaram assentando, também, residência no local,
naquela época, outros aventureiros que seguiram o mesmo itinerário; como as
famílias de Gonçalves da Costa; Martins de Sá; de Manoel Feliz e dos Cardosos.
A família de José Antônio
Pereira e de Maria Carolina de Oliveira, com o desenvolvimento de seus filhos
Antônio Luiz, Joaquim Antônio, Francisca, Maria Carolina, Perciliana, Ana
Constança, Maria Nazareth e Rita, começou a crescer. Casaram-se Ana Constança
com Manoel Gonçalves Martins e Maria Carolina com Antonio Gonçalves Martins. A
impossibilidade de se expandir nas atividades rurais, com espaço para todos,
fez com que procurassem outras alternativas, entre elas a ocupação de terras
devolutas.
Finda a Guerra do Paraguai, com
o retorno para o Brasil dos soldados que se retiraram da região da Laguna, cuja
saga foi descrita magistralmente por Taunay, notícias sobre os campos da
Vacaria foram levadas até Monte Alegre por ex-combatentes oriundos dessa cidade,
um pequeno Arraial àquele tempo. A existência de extensas áreas de terras
devolutas ao sul da Província de Mato Grosso atraiu o interesse de José Antônio
Pereira que, em 4 de março de 1872, empreendeu sua primeira viagem.
Prudentemente, formou uma pequena comitiva, composta por seu filho Antônio
Luiz, dos escravos João Ribeira e Manoel, guiados por Luiz Pinto Guimarães,
sertanista que havia participado da referida guerra. Seguindo os caminhos
percorridos pela expedição da Laguna, adentra Goiás, passando pelo porto de
Santa Rita (hoje Itumbiara), cruzando posteriormente o Rio dos Bois e
dirigindo-se à Vila das Dores do Rio Verde (hoje, Rio Verde), até chegar à
região de Baús, em Mato Grosso (atualmente Costa Rica), daí em direção a Coxim,
contornando o extremo norte da Serra de Maracaju e rumando para o sul, até
Camapuã.
Continuando sua viagem, procura
atingir a região da Vacaria (atual município de Rio Brilhante). Porém, quase em
meio caminho, já atravessando a extensa e erma região do Campo Grande, defronta-se
com terras de ótima qualidade e campos propícios para a pecuária. Eram, enfim,
as sonhadas terras devolutas que José Antônio Pereira estava procurando. Ao
chegar, em 21 de junho de 1872, à confluência de dois córregos, denominados,
mais tarde, "Prosa" e "Segredo", resolve ali se
estabelecer. Constrói um rancho, cobrindo-o com folhas de buriti. Providencia,
também, a formação de pequena roça, amanhando a terra pelo sistema da coivara.
Os meses se passaram. Após a
primeira colheita de uma plantação vicejante, naquele mesmo ano de 1872, decide
voltar a Minas Gerais para buscar seus familiares.
Em Monte Alegre, reúne-se com a
família e pessoas de sua relação, expõe as perspectivas da região com tamanho
entusiasmo que sensibiliza e convence a todos para a grande aventura.
Começa então o planejamento e as
providências para tal cometimento. Mais de dois anos se passaram para que tudo
estivesse organizado. Provisões indispensáveis para a longa viagem, sementes e
mudas de árvores frutíferas, um lote de gado de cria, animais de montaria e
carros mineiros puxados por juntas de bois. Para casos de doença, até remédios
foram providenciados pelo próprio José Antônio, que tinha conhecimentos de
fitoterapia e terapêutica homeopática, exercendo naqueles sertões longínquos o
papel de verdadeiro médico, na falta de um facultativo.
À frente de uma numerosa
comitiva, José Antônio Pereira escolhe desta vez seguir um caminho mais curto
para chegar ao seu destino. De Monte Alegre, dirige-se para o sul, passando
pelo povoado de Prata, indo mais além ao encontro de um caminho paralelo à
margem direita do Rio Grande, divisa da Província de Minas com a de São Paulo,
e que permitia chegar à de Mato Grosso, situada à oeste. Esse trajeto os leva
até as margens do Rio Paranaíba e ao patrimônio de Sant'Anna de
Paranahyba (atual Paranaíba), no território mato-grossense. Para
atravessar aquele rio, já havia, então, uma balsa rudimentar, que possibilitava
o transporte de carretas e animais.
Permanece por vários meses
naquela localidade, ajudando a debelar um surto de malária. Ali, seus
préstimos, como prático da medicina, contribuíram para salvar muitas vidas.
Nessa ocasião, fez a promessa de construir, quando chegasse ao seu destino, uma
igreja em homenagem a Santo Antônio de Pádua, de sua devoção, caso nenhum dos
seus perecesse. Recebe o convite para estabelecer-se definitivamente no
povoado, mas José Antônio, fiel ao compromisso assumido, e ao ideal que
acalentava de chegar às terras do Campo Grande, retoma a marcha rumo à oeste.
Atravessa o rio Sucuriú, o São Domingos, o Verde e a cabeceira do Pardo, passa
outra vez por Camapuã, e depois, em direção ao sul, busca o pequeno sítio que
formara há quase três anos.
Aos 14 de agosto de 1875, chega
finalmente ao local de destino. José Antônio não encontra o zelador que ali
deixara, mas sim, a família de Manoel Vieira de Souza (Manoel Olivério),
mineiro de Prata (antigo povoado de Nossa Senhora do Monte do Carmo, do
Distrito da Farinha Podre) que igualmente fora atraído para estas plagas, pelas
notícias da Vacaria, e que estava no local há cerca de dois meses. É recebido
cordialmente, com a intenção manifesta de Manoel Olivério de devolver-lhe a
propriedade. José Antônio Pereira, idealista e cordato, propõe-lhe parceria nas
atividades a desenvolver. Logo se tornam amigos, e as famílias acabam se unindo
três anos depois (quatro de março de 1878), com os casamentos de Manoel
Olivério com Francisca de Jesus (filha de José Antônio), de Antônio Luiz com Anna
Luiza e Joaquim Antônio com Maria Helena, filhos de José Antônio e filhas de
Manoel Olivério, respectivamente. A pequena igreja, construída por José
Antônio, em cumprimento a sua promessa, é inaugurada com o ato religioso desses
enlaces, que é oficiado pelo Padre Julião Urchia, vindo de Nioac especialmente
para esse fim.
Ainda em 1878, José Antônio
retorna a Monte Alegre, pela derradeira vez, e traz consigo seu genro, já
viúvo, Antônio Gonçalves. Em sua volta, reassume o comando do povoado nascente,
divide as terras para a propriedade de seus filhos, genros, e também para si.
Delimita a área reservada para a sede do patrimônio, denominando-o Arraial de
Santo Antônio do Campo Grande. Torna-se o primeiro Subdelegado de Polícia.
Em 28 de setembro de 1886, recebe
e hospeda, em sua casa, o Bispo de Cuiabá, D. Carlos Luís d'Amour, que
permaneceu no povoado por cinco dias.
A dedicação de José Antônio aos
que adoeciam no emergente Arraial de Santo Antônio do Campo Grande era
reconhecida por todos. Não se limitava apenas à preparação e administração de unguentos,
pomadas, xaropes, tinturas, chás e garrafadas, mas também ao cuidado dos que se
feriam em acidentes. Aos fraturados, encanava-lhes os membros; aos feridos,
pensava-lhes as chagas. Sua fama como parteiro era voz corrente, tendo
assistido ao nascimento de seus filhos. Mais tarde passou a contar com a ajuda
de uma velha escrava, a quem houvera treinado. Posteriormente, ensinou os
ofícios para a própria nora, Maria Helena, esposa de Joaquim Antônio. Secundado
por esta, sempre quando chamado, corria a atender às parturientes da Vila. Esse
mister deu-lhe, também, a primazia de seccionar o cordão umbilical de muitos de
seus netos.
A tradição oral que, através dos
familiares, chega aos nossos dias, dá conta da existência das mezinhas de José
Antônio, cujos recursos permitiam-lhe exercer sua medicina. A aquisição desse
preparo técnico remonta aos tempos de sua vida em São João Del-Rey e Monte
Alegre, nas Minas Gerais. Apoiado no seu Chernoviz, praticava a medicina de
"folk", disseminada pelos sertões brasileiros; ou seja, a cultura
popular do tratamento das doenças. Baseada, como até hoje, na utilização dos
recursos químicos das plantas, através de variegadas tisanas, tais como:
soluções, macerações, infusões e decocções; e de procedimentos eminentemente
físicos, como a manipulação do calor, nos escalda-pés (pedilúvio), e do vácuo,
através de ventosas. As aplicações de cataplasmas, emplastros, compressas,
adjutórios, banhos-de-assento, colutórios, gargarejos e inalações, incluíam-se,
também, nessa prática terapêutica.
A abordagem dos doentes não era
realizada com instrumentos da semiologia médica. Os meios diagnósticos eram
apenas breve interrogatório e a ectoscopia, corroborados pelo experiente
"olho clínico" do velho mineiro, como sói acontecer na prática dessa
medicina sertaneja.
Da figura do Fundador nos
derradeiros anos de sua vida, com a longa barba branca e os cabelos
encanecidos, emergia um ser que mesclava, simultaneamente, austeridade e
doçura. À semelhança daqueles que fazem da arte de curar verdadeiro sacerdócio,
sua simples presença emanava um magnetismo contagiante. Apenas ao toque de suas
mãos, os doentes já começavam ter as sensações de melhora. Na verdade era,
também, exímio benzedor. Não poucas vezes as mães levavam seus bebês acometidos
de "quebranto" para serem benzidos pelo Velho.
Todos esses fatos, que atestam
sua impressionante versatilidade no manejo das coisas da terra e das gentes,
acabaram por consagrar José Antônio Pereira, não só como Fundador e Líder, mas
sobretudo, como o primeiro cuidador da saúde, do povoado nascente.
Em 11 de janeiro de 1900, morre
José Antônio Pereira, sendo sepultado em cemitério que se localizava no bairro
Amambaí, onde atualmente encontram-se construídos o SENAI e a Casa da
Indústria. Tempos depois seus ossos foram transferidos para o jazigo da
Família, no Cemitério Santo Antônio, onde se acham depositados, com os restos
mortais de seus filhos e netos.
José Antônio Pereira foi um
homem dedicado à família, um verdadeiro patriarca, prudente, organizado, justo
e destemido. Católico fervoroso e piedoso devoto de Santo Antônio de Pádua.
Possuidor de um profundo senso humanista, afinado sentimento coletivista, e
pelo seu carisma, um líder inconteste. Aquele homem, de tez clara e olhos
azuis, esguio e forte, cujas mãos eram calejadas pela labuta rural, e também
afeitas ao mister de curar, procurou o Campo Grande, não para construir um
imensurável e improdutivo latifúndio, mas, em busca de terras devolutas,
suficientes para estabelecer-se com os seus, e com aqueles que se afinavam com
seus ideais. Após longas e cansativas viagens, despendendo gigantescos esforços,
enfrentando as intempéries e as doenças, desafiando os sertões, palmilhando
caminhos ermos e desconhecidos, acabou chegando para ficar em definitivo e
multiplicar por aqui suas raízes familiares, fazendo nascer um pequeno povoado,
hoje grande metrópole.
Esta é a história de José
Antônio Pereira, o intrépido fundador de Campo Grande, Capital do Estado de
Mato Grosso do Sul.
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