sábado, 10 de abril de 2021

Eronildo Barbosa - O GOLPE DE 1964 NO SUL DE MATO GROSSO

 O GOLPE DE 1964 NO SUL DE MATO GROSSO

Eronildo Barbosa da Silva

Professor Eronildo


No dia 31 de Março de 1964, um grupo de militares apoiados por uma parcela da sociedade civil e pela CIA americana, promoveu um golpe de estado no país. Colocou   as forças armadas nas ruas e forçou o presidente eleito, João Goulart, e seus ministros a abandonarem o Brasil e se exilarem em outros países. Na seqüência, infelizmente, o que se viu no país e em Campo Grande foi a banalização da violência e a supressão das garantias constitucionais. 

Milhares de pessoas foram presas  algumas mortas  e outras tiveram que abandonar o país. O golpe militar representou um período nebuloso da nossa história com conseqüências nocivas que perduram até os nossos dias. Campo Grande, em que pese na época ser uma cidade relativamente pequena, vivenciou uma situação não muito diferente do que aconteceu no resto do país. Muita gente foi presa sem ter nada haver com comunismo. E mesmo os comunistas e nacionalistas foram presos apenas porque expressavam democraticamente a sua ideologia política, aliás, um direito inalienável da pessoa humana.  

No Sul de Mato Grosso, no início da década 1960, existia um grupo político que ficou conhecido na história regional como ADEMAT-Associação Democrática Mato Grossensse. Essa entidade era ligada a UDN-União Democrática Nacional e ao IBAD - Instituto Brasileiro de Ação Democrática. Seus militantes eram médicos, advogados, pecuaristas, comerciantes, professores, intelectuais, jornalistas, entre outros, mas, pelo que vemos  com pouco sentimento humano. Pelo menos podemos concluir diante da quantidade de intrigas e ameaças feitas por eles, com o objetivo de contribuir, de alguma forma, com a instabilidade da política regional. Na prática, aplicavam no Estado de Mato Grosso a linha política do IBAD  que pregava abertamente o golpe de estado como forma da UDN chegar à presidência do Brasil.    

Os militantes da ADEMAT diziam que agiam em defesa dos interesses da pátria e  dos ideais democráticos, porém, não foi isso que se viu. Demóstenes Martins, um dos líderes da direita no Estado, por exemplo, desenvolveu especial apreço por cargos públicos que ofereciam a oportunidade de  poder bisbilhotar  a vida dos seus adversários.Não é por acaso que, no pós 1964, Demóstenes foi escolhido para dirigir as principais CGI-Comissão Geral de Investigação.Como  sabemos  essas comissões existiam para que o regime militar pudesse vasculhar a vida daqueles que eram considerados inimigos do regime. 

Em 1964, era muito comum ver os militantes da ADEMAT portando metralhadoras e outras armas de uso exclusivo do exército brasileiro, como se  fossem militares de fato.Essa era uma tática muito usada para intimidar os adversários. O médico Alberto Neder conheceu de perto os militantes dessa entidade.Em entrevista ao Jornal Diário da Serra de 31/04/1994, ele declinou o nome de algumas lideranças da ADEMAT: “Munir Bacha, Cláudio Frageli, Agustinho Bacha, Osvaldo Baker e Ladislau Marcondes”. O jornalista Sérgio Cruz destacou outros nomes que participavam também dessa  entidade:   Rodolfo Andrade Pinho, Vicente Oliva, Italivio Coelho, Assis Brasil Correia, Lúdio Coelho, Roberto Spengler, Cândido Rondon, Irmão Bello, Daniel Reis, Cícero de Castro de farias,  Annes Salin Saad, Eduardo Metelo e Cel. Câmara Sena”.   Esse era o chamado núcleo duro, ou como diz Gramsci, os intelectuais orgânicos responsáveis pela formulação e aplicação da política de direita no Sul de Mato Grosso. 

Demóstenes Martins nunca escondeu que a ADEMAT  tinha um caráter para-militar.  Em seu livro (A Poeira da Jornada. 1980.p.239) ele afirma que “a ADEMAT, em 1963, ganhava prosélitos em todos os escalões da  população, preparando-se para a luta, sem distinção de classes partidárias”. No mesmo livro, na pagina de número 251, Demóstenes escreve que “entrementes, na região do Sul, surgia a candidatura do empresário e destacado  pecuarista Lúdio Martins Coelho, focalizada, especialmente pela ADEMAT, organização surgida para combater a ação comunizante do presidente João Goulart, inclusive no campo da luta armada”.  

O Partido Comunista Brasileiro, seção de Mato Grosso, embora pequeno numericamente, tinha quadros políticos com muita influência na sociedade. Eram intelectuais, empresários, profissionais liberais, bem como um time de sindicalistas formado, entre outros,  por João Jovelino, Ezequiel Ferreira Lima, Epaminondas Lemos, Arcelino Granja, Lafayete Câmara, Durvalino Pereira Barros, Áureo Medeiros. Esse partido também possuía um Jornal dirigido pelo vereador por Campo Grande José Roberto de Vasconcelos. O   Jornal   era um instrumento importante de luta política, que, não raro, denunciava em seus editoriais as mazelas da política regional; a ação do coronelismo e  da oligarquia bovina; bem como abria espaço para a opinião da sociedade civil. 

A linha editorial do jornal “O Democrata” era acompanhada de perto pelos militantes da ADEMAT. Os passos dos comunistas também. Em Janeiro de 1964 um grupo de militantes do PCB comemorava o aniversario de Luís Carlos Prestes.À noite, resolveram fazer algumas “pichações” na cidade,  enaltecendo o cavalheiro da esperança, porém, pela madrugada, já cansados, em meio a pincel e tintas, chegou a policia acompanhada de algumas pessoas  ligadas a ADEMAT. Por mais que os militantes explicassem que aquela ação era democrática, que os muros da cidade tinham inscrições de outros políticos, que eles eram bancários e estavam homenageando uma figura importante da Nação, entre outros argumentos, o grupo foi parar na cadeia. Foram presos José David, Ari Rodrigues, Arquimedes, Altino Dantas e Serafim. 

Para tentar libertar os bancários foi acionado o serviço do advogado  Wilson Barbosa Martins, da UDN, porém, com relações de amizade com os comunistas. Ainda na mesma noite o grupo foi liberado, mas, como Wilson  Barbosa era filiado à UDN, integrava a chamada ala democrática, foi duramente criticado por seus companheiros de partido, nos jornais da cidade, por ter  patrocinado a libertação dos bancários .  

Ademais, no inicio do mês de  março de 1964,o Jornal O Democrata foi invadido  e  parte do seu parque gráfico foi danificado. Levantamento feito por peritos indicou que se tratava de uma ação política, provavelmente para calar a boca dos donos do jornal.  Um grupo de  sindicalistas  denunciou o  corrido, por meio de um  manifesto,  dirigido ao Governo do Estado, Fernando Correia da Costa, em que  pediam a intervenção do Estado para que o caso fosse  solucionado e os responsáveis presos. O manifesto foi assinado pelo Presidente do Sindicato da Construção Civil, Durvalino Pereira Barros; o Presidente do Sindicato dos Trabalhadores em  Veículos de Tração Animal, Arcelino Granja; o Presidente do Sindicato dos Bancários, Lafayete Câmara de Oliveira e o Presidente da  Associação dos Trabalhadores no Comércio, Ebert Lago. 

A invasão do jornal e outras formas de intimidações  perpetradas pelos representantes da direita, naquele mês de março de 1964, não podem ser creditados apenas a uma infeliz coincidência.Não é estranho pensar que os  atos estavam devidamente articulado com outros, em outras cidades do país,  eram fatos isolados que se somavam objetivando criar as condições objetivas e subjetivas para o Golpe. Golpe que veio no dia 31 de março.  

Os quartéis ficaram lotados de presos  

A o longo do mês de abril de 1964, foi grande o número de pessoas que foram presas em Campo Grande. Não havia critério para alguém ser preso. Muitas vezes, bastava apenas que um vizinho, um desafeto, ou mesmo um adversário político denunciasse o cidadão como comunista, ou mesmo como simpatizante de algum partido ligado à base do Governo  deposto. Aliás, o denuncismo foi regra adotada em todo país. Por isso,  as cadeias ficaram repletas de inocentes, de pessoas que nem mesmo conheciam a ideologia comunista. Que não sabiam por que estava presa . 

No dia 03 de abril o jornal Correio do Estado estampou uma inusitada manchete, a pedido do comando do exército, em que  lia o seguinte texto: 

“ A ordeira e operosa população de campo Grande e de todo o estado de Mato Grosso pode confiar na ação patriótica do exercito Brasileiro, mantendo-se calma, prosseguindo em seus afazeres normais, certo de que a tropa da região militar  lhe garantirá a tranqüilidade que todos almejamos, entretanto, se elementos mal avisados tentarem perturbar a ordem todas as medidas necessárias serão tomadas com o máximo rigor. General Barbosa Pinto comandante do exército”. 

Ao mesmo tempo em que saiu o comunicado, saíram, também, as viaturas para prender os democratas, nacionalistas, sindicalistas, inocentes e outros.  

O vice-prefeito de Campo Grande na época, Nelson Trad, advogado e militante do PTB, foi um dos primeiros a ser preso. Trad fazia parte de um grupo suprapartidário que existia na cidade, formado, entre outros, por Onofre Costa Lima, René Ned, Humberto Ned, Ràdio Maia, Euclides de Oliveira e Ezequiel Ferreira Lima, que se reuniam semanalmente para analisar a conjuntura nacional e tomar outras providências políticas. Como esse grupo tinha  força política,  contava, inclusive, com o concurso do  prefeito da cidade, Humberto Canale, tornara-se muito visado. 

Relatou  Nelson Trad, aos autores, que estava em casa, à procura de novas informações sobre o desenrolar do golpe, tentando conversar por telefone com o ministro da saúde Fadul Filho, porque tinha recebido a informação do chefe de gabinete  do ministério da saúde, Carlos Bezerra, que existia a possibilidade de Goulart se dirigir à Campo Grande. Antes mesmo de receber qualquer informação concreta sobre as providencias adotadas por Goulart, os militares da segunda seção do exército chegaram a sua casa.“ Eles entraram e foram revirando as coisas. Nem os livros de sociologia da minha mulher eles deixaram em paz. Queriam documentos, armas, coisas que me ligassem com o comunismo. Fiquei um mês preso e incomunicável. Depois, sem aparente razão, eles me prenderam mais cinco vezes. Tinha dia que  me prendiam de manhã e me soltavam a tarde”. O mais complicado, de acordo com Nelson, é que ele era o advogado de  defesa da maioria dos presos políticos e, muitas vezes, não podia comparecer ao tribunal porque estava preso. Assim, a solução era solicitar o serviço de amigos advogados  sensíveis à causa democrática.   

O médico, Alberto Neder, também foi preso. Logo que saiu a notícia do golpe, Neder procurou se refugiar em lugar seguro, pois sabia que era um dos procurados. Assim, procurou a fazenda de um amigo na região de Rio Brilhante, onde achava que estava seguro. Passados os primeiros dias, relaxado, Neder resolveu sair para tentar uma caçada. No meio do mato deu de cara com alguns caçadores liderado pelo fazendeiro Jairo de Castro.  Castro, no mesmo dia, informou a policia onde o “perigoso” comunista Alberto Neder estava escondido.Eis como Neder descreve sua prisão“Eles estavam à procura do vereador Antônio Vasconcelos, que era muito atuante na época. Eu fui delatado quando caí na besteira de sair para caçar e um grupo de caçadores me viu e me delatou. Fui preso e conduzido para o Regimento de Cavalaria Mecanizada” 

O médico, Alberto Neder, foi levado, inicialmente, para a cadeia pública de Rio Brilhante e, de lá, transportado por  avião para Campo Grande, onde ficou preso. Os militares responsáveis pela prisão de Neder desfilaram com ele algemado dentro de um jipe, pela a avenida  Afonso Pena, com o intuito, talvez, de mostrar à população que  o mais conhecido comunista de Campo Grande  estava preso. 

O ex-deputado estadual Alarico Reis de Ávila, empresário, presidente na época do  PTB, amargou trinta  dias de  prisão no mês de  abril de 1964. O motivo principal, segundo ele,  foi  o fato de ter intercedido  por um grupo de amigos do PTB de Rio Verde que foi preso. Esse grupo era formado por comerciantes, fazendeiros, dono de cartório, e não tinha absolutamente nada com comunismo. Alarico nos contou com  muita ironia o que  viu e o que sentiu  nos primeiros dias do golpe  em Campo Grande.  

 “ A chamada revolução, aqui, foi um  desastre, um choque muito grande, uma demonstração de pequenez dos nossos  adversários,  que,  civis,  passaram  a sair de metralhadora na  mão,  apoiados pelos militares,  prendendo pessoas conhecidas que não tinham nada a ver com política, só porque não gostavam do sujeito,  por outras razões, ou era adversário político,  mas nunca por problema de comunismo. Os comunistas aqui eram meia dúzia de pessoas, que não fazia ameaça a ninguém,  como não faz hoje. Esse pessoal ia ameaçar as instituições. Claro que não. Eu fui informado  que  uns companheiros de Rio Verde estavam preso  no exército. Imediatamente me dirigi para lá para saber os motivos da prisão.Fui atendido pelo coronel Viker. Expliquei para ele que estava ali para defender meus companheiros. Ele, então, falou assim:   agora eles irão sair e você vai ficar. O que eu respondi na hora:  é  exatamente o que vim fazer aqui. Eu quero é tirá-los daqui porque eles  não tem nada haver com comunismo. É pura intriga dos adversários.Com isso, eu fiquei trinta dias presos, sendo que os seis primeiros foram incomunicáveis ”.  

Ademais, os jornais da cidade passaram a divulgar comunicados com   nome de pessoas que estavam presa. Assim, no dia 25 de Abril de 1964 saiu o seguinte  comunicado no Jornal Correio do Estado : 

“o comando do Exercito informa que  os senhores Alexandre Tognini, Diomedes Araújo, Radio Maia e Lafayete Coutinho estiveram detidos para serem averiguados e submetidos a verificação sobre suas atitudes e participação em atividades subversivas, tendo sido postos em liberdade em 20 de abril de 1964. Alerta, ainda, que  os referidos senhores não  poderão deixar a cidade. 

Em outro comunicado, o exército informou  que “os senhores José Domingos, Heitor Samaniego, João de lima Couto, José Ribeiro de Melo, Edberto Celestino e Reginaldo de Oliveira estavam  detidos no comando do exército para averiguação. 

 Além das prisões, havia,  também,  muita fofoca aumentando ainda mais o grau de tensão no seio da sociedade. No inicio de abril de 1964, por exemplo,  surgiu um  boato dando conta que a água que abastecia  a cidade de Campo Grande estava envenenada. Que um grupo de comunistas  tinha colocado veneno no reservatório. Isso foi o suficiente para que uma parte da população iniciasse uma peregrinação rumo aos córregos e outros reservatórios para buscar água. Ninguém queria consumir a água fornecida pela prefeitura. O comandante do exército, preocupado com a situação,  foi à imprensa  afirmar que era pura mentira o boato de que a água estava contaminada. Que pesquisas tinham sido feitas pela prefeitura e não encontraram  nada de anormal na água. Formalmente,  ninguém foi acusado pelo ato “terrorista”,  mas, com certeza, foi algo arquitetado para prejudicar os comunistas. 

Enquanto os quartéis ficavam lotados e os comunicados do exército se sucediam trazendo novas listas de  prisioneiros,  os homens  da ADEMAT  continuavam  o rosário de provocação  contra   pessoas e propriedades.  O jornal O Democrata, por exemplo, que dias antes tinha sido parcialmente destruído, mais uma vez foi invadido por  gente  armada de metralhadora, aos gritos, quebrando tudo que o via pela frente. As máquinas e outros equipamentos foram jogados  dentro do córrego da rua Maracajú. O mesmo aconteceu com os documentos e livros. 

O Ato fascista ocorreu durante o dia e  foi    presenciado   por populares e colaboradores do jornal que  nada puderam fazer. O aposentado Manoel Silvestre, ex-taxista, amigo de muita gente que colaborava com o Democrata, presenciou a violência. Disse ele: “Aquilo foi uma  coisa muito violenta. Aquele grupo de homens armados quebrando um jornal que só fazia defender o trabalhador. Foi horrível. Era um tempo sem  lei. Eu conhecia aquele pessoal todo. Eram homens de bem que faziam aquele jornal. Não sei dessa história de comunista ”.   

O sindicalista  Granja, presidente do Sindicato dos Carroceiros  também foi preso. Ele encabeçava a lista dos mais procurados. O ex-bancário, Santa Rosa, que ficou preso no mesmo pavilhão com Arcelino  conta que,  logo após a chegada deles à cela, veio um militar e  perguntou para o grupo se  desejava pedir alguma coisa para a família.  Ele se referia a coisas básicas  como  escova, colchão, lençol, remédio,  entre outros. No entanto, de acordo com Santa Rosa, quando  chegou a vez de Arcelino ele  pediu uma caneta esferográfica e papel pautado.  Quando o policial saiu o ex-deputado Valter Pereira, que estava também preso, espantado,  perguntou a Granja porque ele pediu uma caneta e papel. Calmamente, ele explicou:  meus filhos,  eu conheço esse negocio, já fui preso varias vezes. Aqui a gente pode ficar três dias, pode ficar uma semana, um ano, três anos  ou até 10 anos. Eu pedi a caneta e o papel pautado para requerer meu auxílio carcerário. A CLT assegura esse direito e eu vou fazer uso dele. Passado algum tempo, Arcelino foi beneficiado com referido  o auxílio. 

Por absoluta falta de qualquer acusação formal,  foi solto, porém, meses mais tarde, ele foi novamente preso.  Nessa nova oportunidade o transferiram para São Paulo, onde ficou longo tempo preso. O ex-sindicalista rural, José Rodrigues, membro do antigo CGT - Comando Geral dos Trabalhadores, que também esteve preso, relatou  como foi  a prisão de Arcelino.

“A policia  levou  Acelino  para São Paulo  num carro furgão, o tempo inteiro sem tomar água. Foram mais de 20 ou 30 horas de sede. Quando chegaram lá, durante um interrogatório, quebraram  seu  braço  e o  jogaram num canto igual a um trapo humano. Também bateram muito nos olhos dele. Eu vi ele praticamente cego. Fico com muita pena, pois Arcelino era um homem forte. Um homem muito trabalhador. Depois a gente trouxe ele para perto de nós para cuidarmos da sua saúde. Mais ai já não tinha mais aquela força, pois foi muito judiado”.    

Outro dirigente sindical que ficou muito tempo preso foi Ezequiel Ferreira Lima, militante do PCB, e presidente do Sindicato dos Trabalhadores e do Mobiliário de Campo Grande. Ezequiel,  foi preso no dia 02 de abril 1964, nas dependências do sindicato. Os militares sabiam que naquele sindicato havia pessoas com razoável grau de consciência política. Não que tivessem condições de reagir, mas  com condições de denunciar a farsa. Ademais existia a possibilidade de João Goulart resistir ao golpe. Nesse caso, orientado pelo Comando Geral dos Trabalhadores-CGT, os operários, em havendo condições, poderiam lutar para tentar garantir a legalidade.Com base nessa orientação geral alguns sindicalistas se dirigiram ao sindicato, e assim, tornaram-se presa fácil, pois, ao invés de armas, chegaram ao  sindicato os carros  do exército. 

A professora Alisolete Antônia dos Santos informa que o “ Sindicato dos Trabalhadores nas Industrias da Construção Civil e do Mobiliário foi ocupado e os sindicalistas que se encontravam nas dependências foram presos”  Ainda de acordo com Alisolete os   documentos do sindicato e livros foram confiscados para serem  submetidos a análise da  comunidade de informação. Além do mais, a  Escola  Municipal Humberto de Campos,  criada na década de trinta pela primeira geração de  sindicalistas, que funcionava  na sede   do próprio sindicato desde sua fundação, em 1933, atendendo a centenas de alunos filhos dos trabalhadores da construção civil foi fechada nessa ocasião

Além de ocupar o sindicato o Ministério do Trabalho também decretou intervenção.  Uma junta  governativa  foi formada  com o objetivo de  dirigir os destinos da entidade. A presidência da junta foi entregue ao senhor Levindo Fortunato Monteiro. Para mostrar serviço, orientado pela Delegacia do Trabalho de Cuiabá, Fortunato, conhecido pela sua falta de escrúpulo, como diz Epaminondas Lemos, abriu um “inquérito” administrativo a fim de prejudicar politicamente e  moralmente os diretores da entidade. Ancorado em meia dúzia de depoimentos, claramente orientados pelos advogados do Ministério do Trabalho, as lideranças Augusto  Simão Loureiro,Ezequiel Ferreira Lima,Áureo da Silva,Durvalino Pereira de Barros, Francisco Pinto de Arruda e  Izidoro da Luz     foram “julgados” e culpados pelo desaparecimento de uma maquina de datilografia e outras bugigangas. No dia 11 de março de 1965 foi apresentada a assembléia o resultado do trabalho da comissão de sindicância. A leitura do veredicto foi feita pelo interventor da entidade Levindo Fortunato: “ Como nenhum dos acusados se apresentaram para fazer sua  defesa,   porque estavam consciente de culpa, sendo assim, peço a mesa e todos presentes que os elementos implicados em crime político e crime contra a economia do sindicato, ficassem eliminados definitivamente do quadro de associados deste sindicato” . Assim, na base da fraude e da repressão, Fortunato e os burocratas do Ministério  do Trabalho conseguiram  expulsar do Sindicato  lideranças trabalhistas com longa folha de serviço prestada aquele sindicato e  a sociedade.  

Por outro lado, as reuniões do Sindicato da Construção Civil  passaram a ser monitorada por militares da segunda seção do exército. Alguns sócios que foram presos mas que conseguiram provar que não tinham nada a ver com comunismo,  ou com ações contra a pátria, foram liberados, no entanto, eram obrigados a comparecer  as reuniões do sindicato para assistir palestras sobre “sindicalismo democrático” que  eram proferidas por   palestrantes simpáticos ao movimento de 1964. Era o que eles chamavam de lavagem cerebral. Pessoas ligadas ao governo proferiam longas palestras, condenando o comunismo e elogiando as vantagens do capitalismo e do regime “democrático”. 

Ezequiel Ferreira ficou, inicialmente, três meses preso, em campo Grande. Sua filha, Evanize Lima, historiadora, conta que esse período foi muito difícil para sua família. Seu pai, mesmo quando livre, tinha dificuldade para arranjar trabalho, pois, naquela época, era muito forte a propaganda  contra os comunistas.Todo mundo tinha medo de oferecer um trabalho a alguém carimbado como comunista. 

Por outro lado, não parava de aparecer novas acusações contra Ezequiel. Ainda em 1964, por exemplo, ele foi acusado de organizar em Campo Grande uma guerrilha com o objetivo de invadir  a República do Paraguaio e derrubar  o presidente Alfredo Estrosener. Essa conversa foi muito divulgada na cidade, porém, com o tempo, as autoridades perceberam que era mais um devaneio do pessoal da ADEMAT para incriminar os comunistas e alguns paraguaios que moravam em Campo Grande e que lutavam contra a ditadura  de  Estrosener.   

O sindicalismo bancário era muito ativo em Campo Grande. Em 1963, no mês de outubro, por exemplo, eles conseguiram parar a maioria dos bancos da cidade.O principal líder dos bancários era Lafayete Câmara, funcionário do Banespa, e representante do CGT- Comando Geral dos trabalhadores. Por  isso, naturalmente, Lafayete não podia deixar de ser um alvo importante da direita. No dia 04 de abril ele foi preso. Nessa primeira oportunidade ele ficou 16 dias, porém, outras vezes teve que comparecer ao quartel para oferecer explicações sobre sua atividade política. 

Lafayete nasceu no Rio de janeiro, em 1928. Era filho do Marechal do exército Edgar Câmara de Oliveira que, na década de 1940, comandou a 9ª região militar de Campo Grande. Por muitos anos ele foi funcionário do banco Banespa.faleceu em 1995.Ana Elisa Câmara, arquiteta,  filha de Lafayete, relata o sofrimento da família com as prisões  do pai.

“ Nós éramos crianças. De repente chegou em nossa casa um grupo de policiais e começou a revirar tudo. Pegaram livros e outros documentos.Eles queriam alguma coisa  que comprometesse o meu pai com o partido comunista.Eu me lembro que a minha mãe nos colocou na sala e começou a rezar um terço. Ela era muito religiosa e rezava para que aquela  situação fosse logo resolvida. Só ela, com aquele grupo de meninas, cinco filhas,era muito difícil. A cena dos policiais entrando em nossa casa,  armados, marcou muito. Até hoje eu tenho medo de policia. Tem uma outra história também. O meu pai tinha um cachorro que se chamava parlamento.De repente ele morreu. O meu tio que morava  no Rio de Janeiro ligou para o meu pai e perguntou como estava o parlamento,ou seja,como estava o cachorro.Sem nenhuma razão aparente o telefone ficou mudo. O telefone estava  grampeado.Pensavam que meu pai estava falando de política.Quando voltou a funcionar meu pai falou para o meu tio: o pessoal da comunidade de informação não  sabe que parlamento é o meu cachorro”. 

 Um outro fato inusitado aconteceu no dia 04 de abril de 1964, com o dirigente do sindicato dos corretores de imóveis de Campo Grande, Amaro de Costa Lima. A versão em foco foi contada por Valter Pereira. Amaro era um militante sindical muito ativo. Não perdia reunião política. Era o que podemos chamar de agitador político. Na  primeira semana de Abril de 1964, estava Amaro no centro da cidade na rua 14 de Julho,  quando foi informado por um amigo comum  que o pessoal do exército  e da ADEMAT estava à sua procura. De posse da informação, imediatamente, Amaro tomou o rumo da rua Barão do Rio e foi procurar um lugar para se esconder. Porém, quando deu alguns passos, rápidos, deu de cara com a polícia  que já vinha em  seu encalce. Sem demora, o sindicalista saiu em desembalada carreira. Pulou alguns muros e foi sair na Avenida Afonso Pena, em frente ao antigo quartel do exército. Lá chegando, muito cansado, pediu para que o sentinela  de plantão chamasse o oficial de dia. Argumentou que era algo urgente.  Quando este chegou, inadvertidamente, ele o informou que estava ali para se apresentar às forças da legalidade, queria armas e apoio para combater o pessoal da ADEMAT que estava lhe perseguindo, aí, o oficial informou para ele que às forças da legalidade, da qual ele dizia fazer parte  estava quase toda presa. Naquele momento ele também foi  preso – conta Valter Pereira.   

Caminhada da  família com Deus 

Na semana que antecedeu o golpe, iniciou-se em Campo Grande os preparativos para a chamada caminhada com  Deus e pela pátria.Era uma iniciativa de parte da  Igreja Católica, do clero conservador, das madames e dos políticos direitistas, com o objetivo explícito de apoiar o golpe. No dia 08 de março tinha acontecido uma dessas caminhadas  em São Paulo, com a presença de mais 500 mil pessoas; em outras cidades importantes do país também foram  realizadas  passeatas com esse intuito, inclusive havia um forte apelo para que as mulheres doassem suas jóias para serem vendidas e o dinheiro usado no combate ao comunismo.  

O processo de organização dessa passeata primou pelos mínimos detalhes. O sul de Mato Grosso foi “dividido”, ficando cada região com um responsável para organizar  as delegações que viriam para Campo Grande. Nas cidades onde não foi possível organizar delegações foi recomendado que se realizasse uma missa. A direção geral do evento ficou a cargo do Bispo de Campo Grande, Carlos Shimit.O Deputado Federal, Rachid Saldanha Derzi, médico, líder da UDN,  “preocupado” com os destinos do país, ao que parece,  ficou responsável para  organizar  os fiéis  na  região da  fronteira, em Ponta Porã e cidades próximas. O processo de divulgação e organização do evento foi extremamente  profissional. O jornal Correio do Estado divulgou em matéria de capa o seguinte convite:

“convida-se o povo de Mato Grosso para participar da “marcha da família com Deus e pela liberdade”, que terá lugar ás 16 horas do dia 02 de Abril  partindo  das proximidades do colégio estadual, a rua Juca Pirama, para 14 de Julho. A marcha é apartidária não sendo permitidas alusões em favor de candidatos ou contra as autoridades civis e militares. Venha conosco pela liberdade contra o comunismo”   

Na tarde do dia 02 de abril de 1964,  a marcha foi realizada pelas principais ruas de Campo Grande. Quando passavam em frente ao Bar Esporte,  na época,  na esquina  da rua 14 de julho com Afonso Pena, de acordo com Santa Rosa, o ex-deputado  Rádio Maia, comunista,  titular de um programa diário de radio de muito sucesso na cidade,  transmitido geralmente de um bar, gritou  em alto e  bom som :  “ essa  passeata  é  a passeata das fezes”. Na hora não houve reação.A passeata seguiu serenamente seu itinerário.No  final da tarde, anoitecendo, o ato foi encerrado  com agitados discursos saudando o golpe militar, a família, os homens de bem  e rogando a proteção de Deus.A professora Maria Gloria Rosa de Sá discursou em nome das mulheres de Campo Grande. 

Após a caminhada, quando alguns amigos se divertiam com  Radio Maia, tecendo elogios   a  sua coragem  e outros conversas de botequim, chegou um carro da polícia do exército e prendeu  o descontraído radialista. A brincadeira de Maia  lhe rendeu alguns dias na cadeia. Aliás, Radio Maia começou a ser preso por problemas políticos ainda em 1935, por ocasião da chamada Intentona Comunista.  

Radio Maia ficou preso no mesmo pavilhão que Santa Rosa e Valter Pereira. Um dia, contou  Santa Rosa,  no interrogatório  diário, feito pela  manhã, Maia foi questionado se  sabia onde tinha armas. Os militares achavam que os comunistas tinham depósitos de armas em Campo Grande.Achavam que eles compravam no paraguaio e estocavam em algum esconderijo na cidade, ou na zona rural.  Maia respondeu que sabia. O chefe do interrogatório se aproximou do preso  e  com cara  de espanto, berrou:  onde estão?  Ràdio Maia, calmamente, explicou que as armas estão no poema de Camões, os Lusíadas, e começou a declamar   “as armas e os barões assinalados ...”. O interrogatório nesse dia terminou mais tarde.  

Em Dourados, a situação também foi muito tensa. O fato de existir  na região da Grande Dourados uma acirrada disputa pela terra, entre fazendeiros e colonos, ensejou que os  latifundiários  elaborassem  um conjunto de acusações contra advogados e camponeses,  com o objetivo explícito de, no primeiro momento,  colocar os trabalhadores na cadeia e  depois tomar suas terras. Era um velho plano dos fazendeiros que queriam tomar as terras da colônia agrícola de Dourados. 

Assim, ainda nos primeiros dias de abril de 1964, prenderam o advogado dos trabalhadores rurais de Dourados, Harirson Figueiredo e mais oito camponeses. O grupo ficou preso na antiga delegacia de Dourados sem ter, pelo menos, o direito a tomar banho . Era pra quebrar a resistência dos presos. Para servir de exemplo para os demais camponeses.

Nas  cidades menores onde não existia unidade do exército eram os próprios fazendeiros que organizavam  grupos de jagunços  para intimidar e prender as pessoas indistintamente. Era o caos. Homens despreparados e rancorosos prendendo pessoas como se fossem autoridades.   

Alguns homens públicos, ou não, mesmo correndo risco de vida tiveram a coragem de agir em defesa daqueles que sofriam nos presídios por serem coerentes com as suas idéias.Claro que isso não foi um privilegio de Campo Grande. Vozes corajosas se levantaram por todo país para defender homens e mulheres da truculência militar e civil .Não são poucos os depoimentos que enfatizam o papel corajoso desempenhado pelos advogados sul-mato-grossenses Wilson Barbosa Martins, Nelson Trad, Armando Pereira Falcão, Harrison Figueiredo, Plínio Martins, entre outros, que não mediram esforços e cumpriram com sua missão profissional e social.  

Soma-se a esses o prefeito de Campo Grande,  Antonio Mendes Canale, que, por várias vezes interferiu solidariamente junto às autoridades para libertar presos políticos ou mesmo para melhorar as condições da prisão. No dia 07  de setembro de 1964, Canale, corajosamente, montou  um palanque na rua 14 de julho, separado do palanque dos militares, só para permitir que alguns políticos que estavam sendo discriminados pelos militares,  participassem, num lugar especial,  das festividades da pátria. Esse episódio criou uma certa rusga entre ele e o comando do exército o que gerou rumores que  seria  cassado.  

O golpe militar de 1964 foi um capítulo mais do que negativo na história do Brasil.Homens e mulheres foram humilhados, presos, mortos e exilados porque defendiam um caminho e uma ideologia diferente da chamada ideologia oficial.


Urias Rocha - Mato Grosso do Sul 

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