domingo, 16 de agosto de 2020

A nova ofensiva neoliberal.

 A nova ofensiva neoliberal


Reportagem do Jornal Nacional foi um dos movimentos estratégicos em uma ofensiva orquestrada para que a pauta das reformas neoliberais retome seu rumo original.


Urias Rocha 
Na segunda-feira, dia 10 de agosto último, o Jornal Nacional da TV Globo exibiu matéria atacando abertamente os servidores públicos. A matéria, que surgiu entre uma que falava da condenação de pessoas no caso do desabamento da ciclovia Tim Maia no Rio de Janeiro e outra que falava sobre a pandemia da Covid-19, não foi por acaso, nem uma ação isolada da Rede Globo, utilizando informações de um estudo do Instituto Millenium. Na verdade, se tratava de um dos movimentos estratégicos das lideranças neoliberais numa ofensiva orquestrada para que a pauta das reformas retome seu rumo original, traçado durante a campanha eleitoral e que levou Paulo Guedes e sua equipe liberal ao governo.


Fazem parte dessa ação orquestrada editoriais dos grandes jornais como O Globo (“Em vez de gastos públicos, é preciso acelerar as reformas – 13/08), Estadão (A debandada – 13/08) e outros. Também estão programadas participações em programas de TV e eventos virtuais de “especialistas” vinculados ao Instituto Millenium e outras instituições neoliberais, onde possam defender as ideias apresentadas pelo estudo chamado “Reforma administrativa: diagnósticos sobre empregabilidade, o desempenho e a eficiência do Setor Público”, desenvolvido pelo Instituto Millenium em parceria com a OCtahedron Data eXperts (ODX). Junta-se a isso as manifestações e críticas cada vez mais constantes e veementes de grandes empresários cobrando postura mais liberal do presidente, compromisso assumido por ele durante reuniões que selaram apoios durante a campanha eleitoral em 2018.


Não é coincidência no mesmo período a, denominada pelo ministro Paulo Guedes, “debandada” de cinco ocupantes de cargos em áreas estratégicas da sua equipe (Tesouro, Fazenda, Desburocratização, Privatização e Banco do Brasil), entre eles alguns oriundos do Instituto Millenium. Guedes diz que os que saíram culpam a “lentidão” no encaminhamento das reformas e o “establishment”, que seria “a estrutura estatal – burocrática, política e judicial”, como diz o Estadão em seu editorial da quinta-feira, 13. Lembro aqui o senador Humberto Costa (PT/PE), que questionou se os que saíram desistiram de salvar a economia e se saíram com informações privilegiadas. Para mim, está mais do que claro o uso dessas informações. Temos que considerar também que os que saíram deixaram pessoas de sua confiança nos órgãos onde estavam. Uma coisa é certa, esse jogo não é para amadores.


Como já foi dito em outro momento, ao serem derrotados em quatro eleições presidenciais as lideranças neoliberais optaram por um processo mais radical de retomada do poder. O resultado das eleições de 2014, com a derrota no pleito à presidência da república por uma diferença menor que em vezes anteriores e as eleições parlamentares, onde o resultado lhes era favorável, considerando o perfil conservador e fisiológico da maioria eleita nas duas Casas do Congresso, permitiu que os liberais dessem um passo mais ousado. Aproveitando o quadro criado pela crise econômica vigente e em ação orquestrada com a grande imprensa, além de promoverem a criação de coletivos como se fossem movimentos espontâneos de massa, como “Vem pra Rua”, ‘Movimento Brasil Livre” e “Revoltados Online”, entre outros, todos financiados por grupos empresariais e organizações liberais e de extrema direita, estava pronto o cenário e o golpe se consolidou, com o apoio dos fisiológicos. Os passos seguintes foram a preparação de um processo de retomada imediata da agenda neoliberal, com proposições encaminhadas ao Congresso e alteração de normas infralegais ainda no período tampão de Temer. Para o processo eleitoral de 2018 seria encaminhada a eleição do maior número possível de parlamentares que defendessem os ideais liberais e a preparação de uma equipe que assumisse o controle da máquina pública e da área econômica, de preferência com um presidente alinhado ao ideal neoliberal, ou que permitisse a ação dos agentes do neoliberalismo. Através do partido Novo, criado por liberais e sustentado por banqueiros, e de outras agremiações partidárias, foi eleito o Congresso mais conservador desde a redemocratização após o regime militar. Segundo o DIAP (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar), o perfil da atual legislatura no Congresso é liberal, do ponto de vista econômico, fiscalista, conservador em relação a costumes e comportamento, ideologicamente mais à direita e atrasado em relação a direitos humanos, minorias e meio ambiente. O perfil ideal para implementar as reformas.


Ao conseguirem através da aliança com a extrema direita e a direita fisiológica a vitória na eleição presidencial de 2018, foi dado prosseguimento ao processo de implantação das propostas neoliberais iniciado ainda no período Temer, como a reforma trabalhista e a implantação do teto de gastos públicos. Com a unificação de áreas importantes do governo em um único ministério sob a direção de Paulo Guedes e a rápida aprovação da reforma previdenciária, ainda no primeiro ano de mandato, tudo indicava céu de brigadeiro para as reformas neoliberais.


O contratempo


No entanto, a chegada da pandemia pouco depois da abertura do ano legislativo gerou alteração da rotina e da pauta no Congresso. Com isso, a saída para os liberais não deixarem a discussão esfriar seria investir em eventos com a participação de empresários, secretários de estados e municípios, além de representantes do governo federal e da frente parlamentar em defesa da reforma administrativa, criada no Congresso para fazer o assunto avançar no parlamento, angariando votos e ampliando a base de apoio. Essa frente foi criada em 29 de junho (durante o período de calamidade pública, propositadamente) e, não por acaso, presidida pelo deputado Tiago Mitraud, do totalmente neoliberal partido Novo. Ao mesmo tempo em que os parlamentares neoliberais seguiam no Congresso, Paulo Guedes fazia questão de realizar muitas reuniões e participar de diversos eventos promovidos por empresas e instituições ligadas aos liberais. Em todos os eventos os representantes da equipe econômica e os parlamentares ligados à frente parlamentar pregavam (e seguem pregando) a necessidade de retomada imediata da pauta de reformas, com a volta da tramitação de propostas de emenda constitucional que estão suspensas e o encaminhamento da reforma administrativa imediatamente. Tudo com o apoio explícito do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. A ideia é discutir e tramitar ainda neste restante de ano e votar logo no início do próximo ano. Nesse meio tempo, Paulo Guedes conseguiu negociar com parlamentares do Centrão o apoio na votação do marco regulatório do saneamento básico, sendo vitorioso, o que ainda não ocorreu em relação a outros marcos regulatórios e menos ainda em relação a privatizações, ainda em negociação com os fisiologistas. A dificuldade com o Centrão em relação às privatizações é que a entrega de empresas públicas à iniciativa privada significa a redução de espaços para indicação política das lideranças do Centrão.


Outra coisa que os neoliberais não contavam era que a reaproximação de Bolsonaro com os fisiológicos do Centrão, sua área de pertencimento durante os 28 anos de mandato parlamentar, passasse da aproximação que foi motivada inicialmente pela necessidade de sobrevivência, conseguindo os votos suficientes para impedir a abertura de processo de impeachment. Os liberais não contavam também com a fatura alta apresentada pelo Centrão, especialmente em ano eleitoral, com cargos em órgãos e empresas, além da interferência na pauta do Congresso, o que poderia interferir nos seus planos. Também não esperavam que o presidente resolvesse incluir no “pacote Centrão” a sua campanha antecipada à reeleição, aproveitando o aumento de popularidade decorrente do pagamento do Auxílio Emergencial, que ele sequestrou a autoria para se aproveitar. Como disse o economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor de assuntos internacionais do Banco Central (BC), ao participar de debate na Jovem Pan, “a agenda do ministro da Economia não é a mesma do presidente”. O economista disse também que, para Bolsonaro, “o programa apresentado na eleição não era um programa para valer”. É claro que para Bolsonaro a agenda neoliberal é prioridade se lhe ajudar a manter o poder. Um poder cada vez mais com perfil populista de direita, pró-fascista, militarizado e cada vez menos democrático. É obvio que tanto Guedes, quanto seus aliados e sustentadores empresários e banqueiros neoliberais já perceberam o caminhar diferente do presidente e o descompasso com o que pretendiam. Daí decidirem pela ofensiva, usando o Instituto Millenium e as grandes redes de comunicação para isso.


A ofensiva


Com a possibilidade de mais um adiamento da reforma administrativa, dessa vez para 2021, e a insegurança em relação a reforma tributária que desejavam, além da influência do Centrão nas decisões do presidente, as lideranças neoliberais optaram por uma ofensiva em várias frentes para pressionar Bolsonaro a encaminhar as reformas o mais rápido possível e da maneira que os liberais desejam. Assim foi que se viu a partir da segunda-feira, dia10 de agosto, o lançamento da campanha “Destrava!” do instituto Millenium nas redes sociais e outros meios de comunicação. Concomitante foram divulgadas matérias em noticiários, como o Jornal Nacional e o canal GloboNews, portais de notícias, além de grandes jornais através de editoriais e artigos de seus porta-vozes, todos repetindo dados do instituto Millenium e cobrando o encaminhamento imediato da reforma administrativa, entre outras ações. Ressalto a participação de representantes dos grupos de comunicação em diversas instâncias do instituto Millenium e de outras instituições similares, assim como membros da equipe de Paulo Guedes no ministério da Economia e de instituições privadas, em especial do mercado financeiro ao longo do tempo nessas instituições.


Cabe lembrar que, segundo a Constituição Federal, é de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que disponham sobre servidores públicos da União, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria. Da mesma forma proposições que tratam de criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, inclusive a remuneração dos servidores. Por isso a pressão dos liberais para que Bolsonaro encaminhe a proposta.


Campanha: “Destrava!”


Pensada e preparada como uma arma dos neoliberais para pressionar pela retomada da agenda de reformas como prevista na campanha eleitoral e acordada no período de transição entre a eleição e a posse em 1º de janeiro do ano passado. O objetivo dessa campanha é vender a reforma administrativa como a solução para os problemas da administração pública brasileira, forçar o governo a encaminhar e, se possível, com apoio da sociedade. Para isso, a chamada da campanha diz:” Mobilização pela reforma administrativa, liderada pelo Instituto Millenium, busca conscientizar sobre a importância da pauta retornar à agenda do Congresso Nacional”. O instituto Millenium também está divulgando uma carta aberta, onde, além dos seus, pede que as pessoas “comuns” também assine, dando cara de apoio social.


A partir disso, uma série de afirmações que não se sustentam e dados trabalhados intencionalmente é vendida como verdade absoluta. Aqui, alguns comentários sobre pontos apresentados na matéria do Jornal Nacional da TV Globo.


– “No ano passado o Brasil gastou com salários de servidores públicos federais, estaduais e municipais três vezes mais do que com a saúde”.


A intenção é passar a ideia de que investimento em saúde, assim como outras políticas públicas nada tem a ver com pessoal. O objetivo é exatamente a desvinculação. Ao partir dessa ótica estaria aberto o caminho para outras formas de contratação, precárias e temporárias, com remuneração bem abaixo do que hoje é pago (que já é muito pouco), além de reduzir ainda mais a força de trabalho. Da mesma forma, é aberto espaço para a entrega dos serviços a instituições de caráter privado, através de convênios com organizações sociais, filantrópicas, ou mesmo empresas privadas. O mesmo discurso defensor da terceirização nas áreas privada e pública.


– “De cada 5 postos de trabalho formal do país um é emprego público e esses servidores federais, estaduais e municipais, dos três Poderes, custaram R$ 928 bilhões no ano passado”.


Aqui, há nítida intenção de passar a ideia de excesso de servidores, quando é exatamente o contrário. Algumas observações que o “estudo” não apresenta:


A média de servidores públicos em relação ao total de trabalhadores em 36 países analisados pela OCDE (entidade que o governo brasileiro tanto deseja compor), é de 21%, enquanto no Brasil essa relação era de 12% em 2015 (15% em 2019). Abaixo de países como África do Sul (17%), Ucrânia (22%) e Grécia (23%).


O que também não é dito é que em países como Dinamarca (35%), Noruega (35%) e Grã-Bretanha (23%), entre outros, o serviço público, que fornece serviços de saúde, educação, segurança e saneamento básico, por exemplo, atende 100% da população de forma gratuita e com qualidade. Tem que ser considerado também que o número de postos de trabalho nos serviços prestados pelo Estado levam em consideração a população de cada país e não tem que manter uma proporção obrigatória com o conjunto de pessoas trabalhando. Ainda que nesses países o número de pessoas sem emprego é proporcionalmente bem menor do que no Brasil.


Outra coisa a considerar, segundo o site Terraço Econômico, é que “o percentual maior de servidores públicos nos países europeus pode demonstrar justamente a maior intervenção do estado na economia no sentido de prover emprego para uma massa de trabalhadores que não é absorvido pelo setor privado, devido a uma série de fatores, como por exemplo, o próprio desenvolvimento da economia”. Um olhar oposto ao do Instituto Millenium.


– “O gasto com salários de servidores representou quase 14 % do PIB, o Produto Interno Bruto do Brasil, o valor de bens produzidos em um determinado período, enquanto os gastos com a educação somaram 6% e a saúde recebeu menos de 4% do PIB (3,09%)”.


Segundo o Atlas do Estado Brasileiro – IPEA, “a despesa dos ocupados ativos no governo geral passou de 9,7%, em 2006, para 10,7% do PIB, em 2017. Este crescimento de 1% do PIB na despesa com servidores ativos, colocado na perspectiva da significativa expansão das políticas de bem-estar do Estado brasileiro, da ampliação de suas funções e população atendida pode ser considerado uma expansão mais tímida que a alardeada expansão descontrolada de gastos com o setor público”. Ou seja, o crescimento acusado, em se confirmando, foi em razão da necessidade de atendimento à população, o que pode ser considerado ainda como tímido e insuficiente.


– “Com base em dados do FMI, em 2018, na comparação com 64 países, o Brasil só ficou abaixo da Arábia Saudita, Dinamarca, África do Sul, Noruega e Islândia, em gastos com servidores’.


O estudo cita ainda que “o Brasil vem crescendo abaixo da média dos emergentes desde os anos 90. O Chile, apesar de seus problemas recentes, ainda apresenta renda per capita duas vezes maior que a brasileira”. Mas não diz que em um país que não cresce a população desassistida é acima do que seria em períodos de crescimento e, logicamente, necessitada de maior atendimento através de políticas públicas estatais. Outro esclarecimento é que a renda per capta do Chile é calculada sobre uma altíssima concentração de renda em uma parte bem pequena da população junto com uma muito considerável maioria que ganha próximo de um salário mínimo, resultado de políticas como as defendidas pelo instituto autor do estudo. Lembra a história de duas pessoas, onde uma tem nove pães e a outra, um e, na média ambos teriam cinco pães cada.


– “São quase 10 milhões de pessoas no funcionalismo público (9,7 milhões). Os servidores federais são os que custam mais, 4% do PIB (4,2%), bem mais do que o Brasil investe em saneamento, 0,2%, enquanto mais de 100 milhões de habitantes (104 milhões) não possuem rede de esgoto, lembra o estudo”.


Essa afirmação poderia ser dada informando que, infelizmente, o Brasil investe muito pouco em saneamento, a ponto de deixar 104 milhões sequer têm acesso a rede de esgoto. Da mesma forma também são baixos os investimentos em saúde e educação, como dito no início da matéria.


– “Ainda segundo o estudo, os salários dos servidores federais são mais altos do que os pagos no setor privado para os mesmos cargos. Mais de 95% recebem o máximo da chamada “bonificação por desempenho”.


Nesta questão o “estudo” copia a afirmação do relatório do Banco mundial nas versões entregues aos governos Temer e Bolsonaro a partir de pesquisa feita por instituição privada. Na dita comparação não é levado em conta a Constituição Federal, que em seu artigo 39, parágrafo 1º, diz que “o sistema remuneratório observará: I – a natureza, o grau de responsabilidade e a complexidade dos cargos componentes de cada carreira; II – os requisitos para a investidura, III – as peculiaridades dos cargos”. Diferente dos requisitos e critérios adotados na iniciativa privada.


Em apresentação feita pelo governo federal ao defender as alterações remuneratórias na reforma administrativa foram feitas as seguintes comparações:


Inciativa Privada Administração/Pública Federal


advogado sênior de empresas de grande porte x advogado da AGU

analista contábil/fiscal sênior de empresas de grande porte x auditor fiscal da RFB

analista de planejamento/controladoria sênior de empresa de grande porte x analista de planejamento

analista de recursos humanos (business partner) de empresa de grande porte x analista administrativo das agências reguladoras


Óbvio está o total desconhecimento, ou omissão, do papel do agente público, suas funções, obrigações, responsabilidades e atribuições legais.


– “O tamanho e o peso da máquina pública são um problema a espera de solução urgente. O país precisa redirecionar o dinheiro que vem dos impostos para investimentos, por exemplo”.


Aqui caberia a pergunta de qual seria o “tamanho e o peso da máquina pública” necessários par atender a população dignamente, segundo a instituição neoliberal? Se considerarmos, por exemplo, a deficiência de profissionais de saúde no SUS


– ‘Um projeto do Ministério da Economia previa diminuir cargos e servidores, permitir contratações temporárias, acabar com promoções automáticas por tempo de serviço, como é hoje. Elas seriam apenas por mérito, e acabar com a estabilidade, deixá-la restrita a algumas carreiras, como polícia federal e diplomatas”.


Essa seria a solução para a “melhoria” do serviço público brasileiro? Tenho certeza que não. Mas essa é a proposta defendida pela representante do Instituto Millenium, Priscila Pereira Pinto, ao final da matéria, ao defender o envio da proposta ao Congresso para aproveitar o grande número de servidores que deverão se aposentar nos próximos anos, permitindo que a “nova geração de servidores” possa ser admitida “em uma nova realidade”, muito provavelmente precarizada.


Mais sobre o Instituto Millenium e sua ligação com Paulo Guedes pode ser lido no artigo O Parasita e o Povo, publicado no blog: política Global.


Urias Rocha

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